Aqui deixo alguns trechos do livro "Imaginação", que nos fala da forma como as crianças percepcionam o mundo e o seu interior, criando uma distinção entre o seu eu espiritual e o seu eu corporal, de forma a encontrar uma relação entre ambos. Um livro bastante interessante,a meu ver.
"Diante de um espelho,uma mãe e uma filha pequena conversam. A filha,a certa altura diz com um ar muito maroto:
-Olha mãe, tu estás a ver-me ao espelho mas não me estás a ver toda,porque não és capaz de ver o que eu estou a pensar.O que eu estou a pensar,dentro da minha cabeça,só eu é que vejo!"
Assim se resguardam as mais íntimas partículas do pensamento.Do ser.E onde se resguardam,é também um lugar na poesia.Um dia a mãe foi ao quarto de Ana Luísa, de 3 anos, e não a encontrou.Espreitou na sala e também não a viu.Resolveu então chamar por ela:
-Ó Ana Luísa,onde estás?
Lá de um canto da marquise,a Ana Luísa respondeu,em tom muito firme:
-Estou aqui mamã.Estou aqui,ao pé de mim!
Ana Luísa ao pé de si própria.A aprender a convivência com o seu corpo e o seu nome.Tão distante e tão perto (...)Um dia o João,de 4 anos,perguntou à avó o que acontece às pessoas depois de morrerem.Apanhada de surpresa,a avó disse-lhe que vão para a aterra e se transformam em flores.Tempos depois,andando a passear com a avó pelo campo, o João apanha uma flor e deu-lha.
-Está murcha,está morta. Será que se vai transformar em pessoa?(disse à avó)
Coisas tão simples de juntar,as flores e as pessoas, e ao mesmo tempo tão difíceis de juntar.Depois de observar atentamente a mãe,que tinha lágrimas a escorrer da face enquanto descascava e partia uma cebola,a Catarina,de 3 anos,perguntou muito intrigada:
-Tu estás a chorar mãe?
A mãe explicou-lhe que era acebola que a estava a afectar os olhos e a fazia chorar.
A Catarina pôs-se a olhar a mãe com muita atenção,e depois perguntou:
-Mas por dentro não estás a chorar pois não?
Tinha 4 anos a Margarida,quando entrou,certa manhã no quarto do avô,pela mão de sua mãe.
Perante a desarrumação que ali reinava,exclamou:
-Ai mãe,este meu avô parece mesmo um filho!
Um dia deram ao Francisco,de 4 anos,um carrinho a que era preciso dar corda,e que fazia uma faísca quando andava.
O pai deu-lhe corda e o carro desatou a andar pelo chão fora.Quando parou,o Francisco agarrou-o e estendeu-o ao pai,ordenando:
-Pai,rebobina!
Eis um reflexo da elevação dos video-jogos,brinquedos a pilhas,etc.,e o destrono dos outros brinquedosA Mariana tem 3 anos.Ao passear à beira-mar numa tarde de Outono,vê o esqueleto de uma gaivota,na areia.
-Ó mãe,o que é aquilo?
-É o esqueleto,os ossinhos de uma gaivota.(responde a mãe.)
-E porque é que ela os deixou ali?!
Pergunta que só uma criança pode fazer,e que um dia há-de esquecer.A Rita também quer "botar palavra"!Esta Rita tinha feito 4 anos há pouco tempo.Quando a guerra do Golfo acabou,ao jantar,face à notícia da noite no Telejornal de uma estação televisiva,o pai quis saber do impacto que esta tinha tido na Rita,e perguntou-lhe:
-Ó Rita,sabes que a guerra acabou?
E ela,com um ar cperfeitamente informado:
-Eu sei pai.Morreram os iraques todos,não foi?
O pai insistiu:
-E tu sabes porque é que houve esta guerra?
O tom afirmativo e convicto continuou:
-Sei pai.Então?Todos os dias vinha na televisão que ia haver guerra..Tinha mesmo de haver guerra!
Forte impacto,o da televisão(...)Perante a imaginação,as evidências esfumam-se como que por encanto. As certezas vacilam.Saboreamos o novo gosto de sorrir de espanto,de ficarmos desconcertados com coisas que afinal nos pareciam tão definitivas,tão evidentes.(...)
Um pai,no intuito de aproveitar todas as ocasiões e pretextos para dar uma lição de moral aos seus filhos,mandou pintar no quarto das suas brincadeiras um friso que representava os cristãos lançados às feras no coliseu de Roma.Quando o friso ficou concluído,o pai chamou os filhos e começou a explicar-lhes qual o significado dos cristãos cheios de feridas,a escorrerem sangue,a serem devorados pelos leões,sofrendo estoicamente os horrores do sofrimento,de mãos postas,indiferentes às dores que sofriam,felizes e orgulhosos de morrerem pelo seu ideal cristão.O pai acentuava o aspecto moral das cenas que ia mostrando e,ao terminar o seu moralíssimo discurso,eis que o filho mais novo e mais pequenino lhe diz,com um ar muito preocupado:
-Ó pai,coitadinho daquele leãozinho que está ali ao canto!Não tem nenhum cristão para comer...
(...)
Certo dia,nos tempos em que eu era prof de Língua Portuguesa...
-Ó stora,hoje não nos faça escrever!Vamos antes ler e comentar um texto engraçado...
-Ah,mas vocês não imaginam o que vamos escrever!É sobre uma coisa que tem muito,muito para contar!!!
A turma agitou-se,curiosa:
-Tem muito para contar?!Ah,então assim está bem!
(...)
-Vamos escrever sobre esta parede branca! (disse a professora)
Apontei para a parede que estava do lado contrário à sjanelas,por onde o sol continuava a entrar,exuberante.
O espanto caiu entre os alunos como uma bomba:
-Quê?!Esta parede branca?
-Mas...não tem nada que dizer..é branca!!!
-è branca...pronto,já está tudo dito!!!
Muito serenamente,ordenei:
-Agora,escrevam o que disseram!É a regra.
(...)
Furiosos,lá escreveram o que tinham acabado de dizer(...)
-Ó stora,vendo bem,a parede até nem é muito branca.
outras vozes:
-E está um bocado suja.
-Eu acho que ela tem umas rugas pequeninas
-Se calhar é uma parede muito velhota!
-E deve estar cansada,sempre ali de pé,sem se poder sentar nem um minuto!
-Se não fosse ela,o chão e o tecto não tinha onde se encontrar.
-É pela parede que o chão conversa com o tecto.
Ai,se estão a conversar,nós não ouvimos o que dizem...
-Mas podemos ver o Sol a conversar com a parede.Olhem os quadrados de luz que ele está a fazer na parede.
-São os reflexos dos vidros da janela.
-Não é nada.É o Sol que entra pela janela e vai conversar com a parede!É a voz dele...
-Ai stora,esta parede é muito malcriada!
-Muito malcriada,porquê? (professora)
-Porque está a virar as costas ao corredor-risos
-Oh!Ela já dvee estar mas é farta de nós!Está sempre a ver-nos...
-E a ouvir-nos!E a ouvir as aulas todas quer há aqui!
-Posso tocar nela?É fria!Tem as mãos frias!Estará doente?
-É.E está pálida.Está muito pálida.Terá febre? (várias mãos foram tocar na parede)
-Não,febre não tem.Está fresquinha!
-As paredes deviam ter desenhos bonitos.Eram as histórias que elas contavam...
-Esta parede branca deve saber muitas histórias.
(...)
Esta foi sem dúvida uma das mais belas poesias que aquelas crianças foram capazes de escrever:
nos olhos-como lida
na memória-como escrita
no coração-como imaginada